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CRÍTICA: A PIOR PESSOA DO MUNDO: "Existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade." 

  • Foto do escritor: João Paulo
    João Paulo
  • 17 de set. de 2024
  • 4 min de leitura

São poucas as vezes que assistimos a um filme e nos identificamos tanto com aquela história. Essa não foi a primeira vez que assisti a The Worst Person In The World, foi a segunda, e é interessante como assisti-lo em dois momentos completamente diferentes da minha vida também o transformou em dois filmes totalmente estranhos um ao outro, mas complementares. Antes, eu já tinha uma percepção do que a narrativa tratava e sobre como ela explora os medos e as inseguranças de uma vida sem garantias, incompleta, insatisfatória, mas em constante movimento.


Hoje, eu percebo com ainda mais profundidade, e colocando muito da minha própria vivência, o peso que é não saber seu lugar no mundo, não ser o protagonista da sua própria história, viver a vida pelo outro e não por você mesmo. Naquela época, eu já refletia sobre como se permitir viver é uma escolha diária. Uma escolha difícil, com a qual somos obrigados a nos confrontar até o fim de nossas vidas. Somos falhos, erramos, acertamos, mas há também o ponto em que sequer andamos por medo de tentar, medo do que pode vir. Pensava comigo mesmo o quanto gostaria de ser forte o suficiente para voltar a andar um dia.


Em 2022, eu me via paralisado, empacado, quase morto. Hoje, em 2024, após meses de angústia, ansiedade e muita dor, sinto que, aos poucos, estou retomando o rumo da minha própria vida. Eu estava com medo de dar qualquer passo sem saber onde pisaria. Precisava de garantias. Ainda preciso um pouco. Essa é uma batalha de uma vida inteira: se desprender das expectativas, cobranças e focar em estar consciente.


Hoje, compartilho do mesmo pensamento de James Baldwin: "A arte está aqui para provar, e ajudar a suportar, o fato de que toda segurança é uma ilusão". Nilton Bonder também diz, no livro dele A Alma Imoral: "Todo lugar em que o homem cresceu e se desenvolveu, um dia se torna estreito. Nenhum lugar pode ser amplo para sempre. O ventre materno é o primeiro exemplo disso. Saber entregar-se às contrações de um lugar estreito rumo a um lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico."


É um momento duro e cruel quando você se vê dentro de um relacionamento amoroso e percebe que vocês não estão mais na mesma página. Existe amor, amizade, mas algo parece estar fora do lugar. Os meses vão passando, logo os anos, e esse desconforto, essa inquietação, vai aumentando até se tornar insuportável e inevitável.



No começo do filme, acompanhamos e descobrimos um pouco sobre Julie, uma pessoa constantemente transitando de um lugar para o outro, de um interesse para o outro, de um amor para o outro. Existe uma constância nessa inconstância, e ela é o olhar que não volta para si, mas para fora. Por outro lado, Julie sempre procurou tomar as rédeas da própria vida. Seja mudando de carreira, seja na forma como gosta de transar, ela é alguém que faz. Em uma conversa de mesa, ela consegue desestabilizar o outro, se fazendo ouvida e respeitada. A performance de Renate Reinsve é sutil, mas extremamente perceptível, o que incorpora muito bem o que se passa dentro da personagem.


Mais uma vez, assim que ela percebe que está se sentindo sufocada, deslocada, não vista, em um momento de impulsividade, ela faz algo por ela e por mais ninguém. É possível sentir a adrenalina na sua pele, o ar entrando e saindo dos seus pulmões rapidamente, o formigamento nas mãos. Estamos nessa aventura junto com ela. Culpados e curiosos. É um momento tão inteligente e excepcional do filme, na forma como brinca com as convenções do que é uma traição e do que não é.


Nilton Bonder, no mesmo livro citado acima, reflete como a traição é inevitável. O indivíduo trai a si mesmo quando reprime seu próprio desejo, quando ignora sua vontade para viver a moral da sociedade. Trai a si mesmo ciente de que aquele desejo faz parte do seu ser. Trai a si mesmo porque foi ensinado que se deve desejar não desejar, que o desejo gera sofrimento, gera conflito, gera questões significativas do sujeito com a religião, com a sociedade, com sua tradição. Segundo ele, os desejos são incontroláveis no sentir, mas no fazer não, isto porque é nesse lugar de humanidade que fazemos a gestão dos desejos. "Há traições pela fidelidade muito mais violentas do que as traições pela transgressão."


É nesse sentido que The Worst Person In The World explora a traição. Um texto muito maduro escrito por Joachim Trier e Eskil Vogt. Não a traição com o outro, a traição sobre a régua moral, mas a traição que cometemos com nós mesmos. Podemos, de fato, nos sentir “a pior pessoa do mundo” quando priorizamos nossas vontades. Nos sentimos egoístas quando não fazemos o que o outro espera de nós. É uma dualidade, uma complexidade imensuravelmente desafiadora, aprisionadora e libertadora. "Existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade." 



Vivendo o agora, me senti preparado para revisitar esse filme e que bom que o fiz. É uma história que não entrega respostas fáceis. Ela é tão complicada e incoerente como a vida. The Worst Person In The World é um convite a abraçar a impermanência. Não há nada mais natural como o caráter transitório da vida. Enquanto vivermos nossa verdade, sermos fiéis a nós mesmos e tivermos coragem de abraçar o novo, deixar o velho ir e seguir em frente, talvez possamos ser plenos. Seguros que não existe tal coisa como uma “segurança”. Abraçar o pandemônio no outro, na vida e em nós.


“São as águas de março fechando o verão 

É a promessa de vida no teu coração”



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