CRÍTICA: A SUBSTÂNCIA: Talvez encarar o espelho ainda seja a coisa mais assustadora na vida.
- João Paulo
- 22 de set. de 2024
- 4 min de leitura
Até onde é possível nos odiarmos? O quanto estamos dispostos a ir para negarmos quem somos? Até onde estamos determinados a buscar algo inalcançável? Como as mulheres da indústria do entretenimento são tratadas quando envelhecem? Como os homens são tratados? Essas são algumas das perguntas que constroem o filme de horror psicológico e corporal A Substância. Filme dirigido pela diretora francesa Coralie Fargeat que, em um ano afogado em nostalgia barata, matou o passado, ou melhor, através dele, construiu sua provocação. Fazendo isso, expôs a crueldade e o ódio inerente em todos nós. Um ódio muito falado que nunca nos abandona. Nunca deixamos que ele vá embora. O filme joga a sutileza pela janela e grita violentamente, de forma gráfica, para nós.
Desde que somos pequenos, enfrentamos uma guerra interna, consciente ou não, entre quem somos (ou julgamos ser) e quem gostaríamos de ser. Construímos no nosso imaginário a imagem de uma versão ideal nossa: mais bonita, mais jovem, mais inteligente e incomparavelmente perfeita. Um padrão muito alto, longe da nossa própria realidade, longe de quem verdadeiramente somos. Todos nós enfrentamos batalhas ao encarar o espelho e o tempo. Existe dentro de nós uma angústia, um ódio, de tudo aquilo que somos, mas não gostaríamos de ser. Refletimos isso fugindo de nós ou voltando para nós essa dor de maneiras violentas e bárbaras. Podemos querer mudar, sermos pessoas diferentes, melhores, mas deixar que isso apague nossa identidade? Deixar que isso anule todas as partes que fazem de você você?
A Substância também explora a forma como a indústria e a sociedade enxergam mulheres mais velhas. Se antes elas serviam apenas para a sexualização de seus corpos, após os cinquenta anos de idade, quando já não podem mais engravidar, tornam-se inúteis para os homens. Consequentemente, as trocam por mulheres mais jovens e mais bonitas para continuar o ciclo venenoso. A crueldade de uma indústria dominada por homens e para homens.
Inicialmente não estava conseguindo me conectar de corpo e alma com a história. Estava consumindo de forma racional demais sem ter ideia do que estava realmente assistindo. Julgava tudo óbvio e repetitivo. Como se o filme estivesse constantemente nos lembrando: “O filme é sobre isso, tudo bem? Tá vendo? O filme é sobre isso!”. O que me incomodou por alguns minutos. Até perceber padrões e um senso de humor que progressivamente foram me conquistando, me colocando para dentro da narrativa e, enfim, fui aceitando, acolhendo, todos os absurdos que fossem cometidos em tela.
O filme tem sim uma mensagem propositalmente muito clara. É um filme que não existiria, não teria o impacto que tem, perderia seu propósito, se fosse sutil. São temáticas tão datadas, rotineiras, que já não prestamos tanta atenção nelas. Só algo espetacular, grotesco e hediondo para nos tirar de nossas cadeiras e nos provocar. Cada vez mais a história vai indo para o caminho do impensável, do cômico e do trágico.
A Substância, com frequência, chega ao seu limite. Quando pensamos ter chegado ao clímax, o filme supera seu próprio limite. Até superar novamente e essa corda vai esticando e esticando até um final catártico e icônico de deixar as pessoas saírem do cinema abaladas, tremendo, com as mãos formigando, o sangue fervendo, enfim, em verdadeiro êxtase. Uma experiência única daquelas que gostaríamos de esquecer. Seja para assistir novamente como se fosse a primeira vez ou, de fato, esquecer. É uma experiência igualmente intensa, mas diferente em inúmeros aspectos para cada pessoa. Durante a sessão foi possível ver várias pessoas fechando os olhos ou rindo confusas e assustadas com o que acontecia no filme.
Acredito que é possível dizer que A Substância abraça o camp. Para Susan Sontag, as obras verdadeiramente camps são aquelas em que o exagero é sincero e ingênuo. O camp é uma sensibilidade (e não uma “ideia” ou “conceito”). Toda sensibilidade é difícil de apreender, mas o camp é mais desafiador porque se trata de uma sensibilidade “não-natural”. Se trata do artifício, do exagero. Segundo Sontag, “Camp é uma visão do mundo em termos de estilo – mas um estilo peculiar. É a predileção pelo exagerado, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são.”
Como o cineasta, crítico e professor de cinema Arthur Tuoto pontua: "É difícil definir se uma obra é ou não camp, mas é interessante pensarmos nessa definição como uma sensibilidade que propõe um olhar mais romântico e ingênuo sobre a arte. Ainda mais nos dias de hoje em que o cinema prioriza aspectos cada vez mais realistas e verossímeis em suas narrativas e propostas." São filmes propositalmente exagerados, bregas, com situações jocosas que envolvem uma inversão de valores morais e estéticos.
Ainda existem diversas referências claras a clássicos do cinema como O Iluminado, 2001 - Uma Odisseia no Espaço e comparações podem ser feitas a filmes como Braindead, Perfect Blue, Cisne Negro e Pearl. Essas referências ajudam a aprofundar a exploração do filme sobre os padrões tóxicos de beleza e a obsessão com a juventude na indústria do entretenimento.
Posso dizer, com certeza, que essa foi a melhor experiência que tive no cinema em 2024 até agora. Com a companhia de bons amigos, saímos todos engasgados, atônitos, processando o que tínhamos acabado de assistir. Poucas vezes assisti algo que explorasse o auto-ódio de forma tão visceral. Com humor ácido, sangue, tripas, ódio, repulsa, ignorância, decadência e tantas outras palavras que eu poderia assimilar. De alguma forma, ver esse ódio representado na tela da forma como foi retratado, me trouxe conforto. Eu senti prazer e me diverti em várias cenas. Me senti visto e ri da minha própria estupidez ao me dar conta que me trato exatamente dessa forma todos os dias. Pequenas e grandes violências que já se tornaram rotineiras simplesmente por não suportarmos olhar para o espelho.
“My biggest enemy is me, pop a 911
My biggest enemy is me ever since day one
Pop a 911, then pop another one”
911 por Lady Gaga
Comments