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CRÍTICA: ARMADILHA: Acolhendo os absurdos em nós e nas histórias.

  • Foto do escritor: João Paulo
    João Paulo
  • 12 de ago. de 2024
  • 4 min de leitura

Confesso que foi difícil criar antecipação para assistir Armadilha, dirigido por M. Night Shyamalan. Quando saiu o primeiro material de divulgação do filme, a primeira impressão que tive foi de saber mais do que eu gostaria. No momento, pensei que essa seria mais uma história que eu preferiria ter assistido sabendo o mínimo possível, mas, para a minha surpresa e alívio, o filme não se prende ou se limita à sua trama inicial. Shyamalan é conhecido por trazer grandes viradas nos seus filmes e aqui ele toma uma abordagem diferente. O resultado final é uma experiência divertida que brinca com a comédia e o suspense e, ainda que não seja um trabalho excepcional do diretor, é um filme que cria espaço para reflexões sobre a oposição que existe quando duas identidades entram em conflito e a forma como consumimos histórias.


Por muito tempo, não fui muito próximo de seus filmes, mas após a mostra “Shyamalan: Dinâmicas da Fé”, que aconteceu aqui em Belo Horizonte, no Cine Humberto Mauro, me reconectei com suas histórias. Ao longo de sua filmografia, o diretor explora a dicotomia de fé e descrença. Não apenas no sentido religioso, mas como uma característica comum a todos nós de diferentes formas e contextos. Acreditar em algo maior do que nós mesmos. Vitor Miranda, Gerente de Cinema da Fundação Clóvis Salgado e curador da mostra, explica: “O interessante dos filmes do Shyamalan é que, a cada obra, ele traz uma nova pergunta sobre a religiosidade. Temos longas que destacam a fé dentro da comunidade, outros que enxergam a crença dogmática como patologia, alguns que focam na convicção individual, e também aqueles que tratam da fé como reposicionamento do mundo. No final das contas, a filmografia dele gira em torno de uma questão central: ‘No que se quer acreditar?’”.



De forma explícita ou não, a fé está presente em quase todos os filmes de Shyamalan. Em Armadilha, temos um personagem, Cooper, que vive ao extremo seu próprio conflito paradoxal: descobrimos logo no início que ele é um pai adorável, mas também um assassino em série procurado. Ao levar sua filha para um show, descobre que tudo não passa de uma cilada para capturá-lo. Como disse no começo, à primeira vista, parece ser uma sinopse que entrega quase toda a história. O que não é mentira dependendo do ponto de vista. Se não considerarmos todo o desenvolvimento e a forma como a história, através da comédia e do suspense, acentua a tensão entre as duas identidades do protagonista: um pai presente, um bombeiro bem-sucedido, um marido amoroso e um assassino bárbaro. Em Armadilha, acredito que a questão da fé, além da batalha interna que Cooper enfrenta para conciliar suas duas identidades, nos coloca na história a partir do momento em que nos convida a acolher os absurdos. Acreditar. Abraçar a história como ela é e não como achamos que ela deveria ser. 


É impossível não lembrar de Serial Mom do John Waters e como ele brinca com a personagem, interpretada maravilhosamente bem por Kathleen Turner, transicionando entre essas figuras: mãe e assassina. Há uma fala logo no começo de Armadilha que imediatamente me trouxe de volta para Serial Mom quando Cooper diz para sua filha que não irá atravessar o sinal para chegar mais rápido ao show porque não quer infringir nenhuma lei. Da mesma forma que John Waters, Shyamalan, apenas com esse diálogo, já apresenta para o espectador o lado cômico da história que vai contar. Serial Mom é uma comédia inteligente que aborda a visão deturpada que as pessoas têm com filmes de horror e como eles podem ou não influenciar as pessoas. Da mesma forma, mas com outro contexto, Armadilha também é um reflexo de um tempo e da forma como consumimos histórias.


Quando Vítor (@acinemateca) e eu saímos da sessão, ele comentou comigo sobre as reações de algumas pessoas que estavam na sala conosco e como tentavam racionalizar toda a história. Diziam que o filme não era realista o suficiente. Shyamalan, como diz Thiago Gelli, trava uma guerra contra a apatia no cinema. Não estamos colocando em cheque a qualidade do que está sendo discutido, mas a maneira como consumimos filmes, arte, e como, erroneamente, buscamos interpretar e encontrar incoerências que mais nos afastam do verdadeiro sentido do que nos aproximam. Quando penso na cena final de Armadilha, o que vejo não é alguém, literalmente, se libertando do lugar que estava, mas da condição. Abraçando sua própria loucura, seu absurdo, assim, virando um só.



Vale mencionar alguns momentos que me marcaram muito. Não costumo adorar a característica de explicar a história que é algo presente em muitos filmes do Shyamalan, mas há uma sequência inteira do Cooper com sua esposa que é executada de maneira tão teatral, valorizando cada diálogo, movimento de câmera, tempo, ação e reação, que, para mim, torna essa uma das cenas mais tensas de 2024. Outro momento que brilha é quando, pela primeira vez, as duas identidades se colidem. Quando Cooper é obrigado a confrontar o caráter destrutivo de suas duas vidas. Contudo, acho inconveniente usar o trauma materno como artifício narrativo em Armadilha. É algo pouco explorado, conveniente e que enfraquece a complexidade emocional do filme, o que reduz o impacto psicológico da trama. Nem tudo precisa ser explicado.


2024 tem sido um ano fraco para o cinema. Armadilha não atinge todo seu potencial, mas oferece uma experiência que desafia o espectador a pensar além da narrativa abraçando os aspectos mais absurdos e paradoxais da vida, do cinema e de nós. Acolher, não ser condescendente. É a continuidade do legado de Shyamalan que, através de filmes populares, desperta a reflexão e não oferece respostas prontas. Depois de anos, eu encontrei em sua filmografia uma beleza característica que não imaginava ter. Armadilha nos lembra como a busca por realismo e coerência pode, às vezes, nos afastar do verdadeiro prazer de assistir a uma boa história. 



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