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CRÍTICA: CRUISING - O inimigo em nós

  • Foto do escritor: João Paulo
    João Paulo
  • 4 de jun. de 2024
  • 5 min de leitura



A violência sempre foi uma característica intrínseca à humanidade, seja contra o outro ou contra nós mesmos. A consciência, o medo da existência, o medo do outro e de nós mesmos, parece ser o âmago dessa violência que se difere da selvageria, da brutalidade animal inconsciente e inteiramente instintiva. Nós enxergamos o mundo e os outros apenas com os nossos olhos. Refletimos no outro tudo que somos: nossa vivência, nossos medos, preconceitos e ignorâncias. O processo que é se conhecer e conhecer o outro pode ser tão libertador quanto destrutivo. Cruising, dirigido por William Friedkin, explora essa complexidade humana que é acolher todas as partes de nós, independente de quais sejam. Quando isso não acontece, projetamos no outro, que compartilha dessa mesma característica, um inimigo. Um alvo que precisa ser combatido e eliminado já que representa tudo aquilo que não aceitamos em nós mesmos.


Steve Burns, interpretado por Al Pacino, é um policial que recebe a missão de se infiltrar na cena gay e sadomasoquista de Nova York para encontrar um assassino em série que tem matado e desmembrado brutalmente homens gays. Ele precisa assumir uma nova identidade, se adaptar e servir de isca para o criminoso. Quanto mais Steve se envolve com o caso e com aquele universo de couro, suor, porões e homens robustos, mais ele questiona sua própria vivência. Se vê em um momento de inquietude, incertezas e deslocamento da sua própria realidade. 





Estamos acostumados com histórias sobre assassinos e a busca por uma motivação que justifique seus assassinatos. Histórias que colocam o espectador numa posição confortável, mesmo que provocativa na maioria dos casos. O interesse por true crime sempre existiu e provavelmente nunca esteve tão alto. Ao mesmo tempo que revela um prazer inconsciente em conhecer histórias tão chocantes, também evidencia um outro tipo de prazer: o “ainda bem que não sou eu”.


Muitos de nós acreditam que nunca seríamos capazes de cometer tamanhas atrocidades, mas quando confrontados de maneira tão profunda, por nossos desejos mais íntimos, como processar isso? O medo de tudo aquilo que é diferente em nós é violento. Quando não refletimos esse ódio em nós mesmos, refletiremos em outras pessoas. Cruising, de forma corajosa e original, estremece em nós essa insegurança tão comum e ainda tão pouco falada.


Inicialmente, Friedkin não tinha a ideia de passar uma mensagem com o filme, muito menos julgar se o que está mostrando é certo ou errado, moral ou imoral. Cruising é feito quase de forma documental em um tempo onde houve o crescimento desse movimento gay sadomasoquista, lugar que recebia e ainda recebe preconceito da própria comunidade gay. Os idealizadores do filme pensaram em ver se tudo aquilo era verdade e era. Eles foram, conheceram e estiveram lá por várias noites. Independente do julgamento, havia lá pessoas normais como nós, com vidas normais e empregos normais vivendo duas vidas. De dia trabalhando como um vendedor qualquer e à noite explorando desejos sexuais tão intensos, profundos e mal vistos pela sociedade.





Era um filme à frente de seu tempo. Ambicioso, controverso e obscuro, era uma história de murder mystery muito boa para se contar e Cruising é inspirado em verdadeiros relatórios da polícia. Relatórios que inspiraram algumas das cenas dos assassinatos e todo o processo de investigação. É um filme inspirado em um livro, de mesmo nome, que veio de vivências reais. Alguns perceberam, na época de seu lançamento, que poderia se tornar um filme cult gay.  Ele passou por reavaliações à medida que envelhecia e foi reivindicado como uma “cápsula do tempo camp”. Um filme que também bebe de fontes como o slasher, o giallo e o noir.


Al Pacino parece transpor perfeitamente sua própria inocência, ingenuidade e ignorância quando confrontado com aquele mundo para seu personagem. Pacino não sabia sobre a atmosfera do filme, nunca tinha tido qualquer contato com aquele universo. Longe da sua zona de conforto, ele ficou bastante desconfortável durante vários momentos das filmagens e não falou sobre o filme por muito tempo. Houveram protestos para que o filme não fosse lançado e Pacino e toda a produção foram xingados por milhares de pessoas. Os outros personagens que estão no filme também se destacam  por suas performances. Como Friedkin disse: “Eles habitam os personagens. Eles não os interpretam, eles os habitam.”


A edição é uma das partes mais criativas e funcionais do filme. Ela, por si só, traz uma liberdade em mudar sequências, ordem das cenas e serve como um lugar para experimentação. Com imagens e trilha sonora subliminares, se constrói uma atmosfera arrepiante como uma mão gelada na nuca.  


A característica que mais se destaca em Cruising é a forma como, propositalmente, confunde o espectador e não entrega respostas fáceis. O filme pede que nós, enquanto assistimos, digamos quem é ou quem são os assassinos. Em vários momentos o(s) assassino(s) têm uma alteração de corpo, voz e rosto. Vários atores interpretam o assassino e até sua voz é dublada por outro ator. Existe esse fator X de que há sempre à espreita um assassino violento. Sempre haverá outro. Isso é algo enigmático o suficiente para perturbar o público, o que torna Cruising uma experiência perturbadora e inconvencional que afeta as pessoas em seus níveis mais profundos.


Quem é o assassino? Quem você quer que seja o assassino? O próprio Friedkin afirma não saber quem ele é. É um filme sobre transformação e a última cena, emblemática e inesquecível, traz uma profunda reflexão: quando você olha pra alguém, você realmente conhece essa pessoa? Você sabe quem eu sou? O que sou? Eu te conheço? Quem é você? Eu finalizo minha crítica deixando uma citação de um texto que amo muito de Nilton Bonder.


A Ditadura do Bom de Nilton Bonder.


“Perceber que a palavra “outro” (próximo) tem a mesma raiz que a palavra “ruim” é entender um pouco de nossa psique. O que é diferente é automaticamente visto como “ruim”. Verdadeiramente amar o “outro” é tão difícil e violento como se propusemos amar o “ruim” ou o imperfeito. [...] Como poderemos tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é “outro”, o que está fora de padrão e de expectativas? Não há identidade sem o outro; não há bom sem o ruim; não há bem sem o mal. [...] Afinal amar é o sentimento capaz de apreciar o diferente.” 





CURIOSIDADES: 


  • Em várias das cenas que vemos nos clubes, onde os homens se encontram para curtir, beber e dançar, vemos na tela, não apenas figurantes, mas todos são frequentadores reais daquele espaço.


  • Friedkin tinha uma versão do filme com 40 minutos adicionais de pura pornografia masculina. Antes do corte, várias cenas que existem no filme eram mais explícitas com close-ups e tudo.


  • Al Pacino não era a primeira escolha de Friedkin para o protagonista. Richard Gere havia demonstrado um forte interesse e faria o papel, mas posteriormente Al Pacino foi escolhido. Gere era a escolha de Friedkin porque acreditava que Gere traria uma qualidade andrógina ao papel que Pacino não poderia.


  • Friedkin precisou usar uma jockstrap nos clubes uma vez por causa do dress code de uma das noites.


  • Em sua pesquisa, Friedkin trabalhou com membros da Máfia, que na época eram donos de muitos bares gays da cidade.


  • Houveram imensos protestos para que o filme não fosse feito, muitos deles vindos da própria comunidade gay. O filme recebeu muitas críticas negativas na época do seu lançamento, mais do que Friedkin poderia imaginar, mas com o tempo Cruising vem sendo cada vez mais revisitado e reconhecido como um filme à frente de seu tempo.

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