CRÍTICA: EMILIA PÉREZ: Do que e como os santos são feitos?
- João Paulo
- 18 de nov. de 2024
- 4 min de leitura

Antes de qualquer coisa, santos são humanos. Defeituosos, violentos, cruéis, transgressores, resilientes, figuras no imaginário da cultura, da religião, da história, que carregam uma moral, um simbolismo capaz de despertar nas pessoas o sentimento de pertencimento e de amparo. Alguns vêm de uma história de redenção, outros de resiliência ou resistência. Vítimas das circunstâncias, missionários, quebrando barreiras culturais e religiosas. Dessa forma, Emilia Pérez é um filme que bebe desse simbolismo, da religiosidade, do melodrama, da novela, da música e da cultura latina para contar uma história de paixão, transgressão e o conflito que é ser aquilo que não se é. Viver uma vida que a vida não te deu.
Saulo de Tarso era um fervoroso perseguidor de cristãos que ele considerava hereges. Ele esteve, inclusive, presente no apedrejamento de Estêvão, primeiro mártir cristão. Foi só após ter sua visão tirada e ser confrontado com uma aparição de Jesus Cristo que Saulo se tornou Paulo. Batizado, tornou-se um seguidor de Jesus e dedicou o resto da sua vida a pregar o evangelho. Da mesma forma, Manitas, líder de uma organização criminosa, quer morrer para renascer. Aprisionado em um corpo que não é seu, mas ainda assim é, deseja recomeçar como Emilia. Apesar de todo o mal praticado no passado e do mal que ainda reside dentro de si, ela encontra seu propósito. Algo que muda a vida de todos ao seu redor e, principalmente, a dela mesma.
“Metade ele, metade ela, metade pai, metade tia, metade rico, metade pobre, metade chefe, metade rainha. Metade aqui, metade ali, metade morta, metade viva. Metade dentro, metade fora, tudo, nada. Quem sou eu? Não sei, sou o que sinto. E pela primeira vez sinto um sentimento.”

Emilia Pérez é muitas coisas, e é nessa complexidade que Rita, interpretada de maneira espetacular pela atriz Zoë Saldaña, se envolve de corpo e alma por ela. As duas, a partir de um acordo, constroem uma amizade e estabelecem uma confiança, uma conexão que muda radicalmente a forma como ambas enxergam a vida e a si mesmas. Rita, antes uma advogada sem perspectiva que defendia criminosos ao invés de colocá-los na cadeia, encontra em Emilia o impulso para dar espaço a quem ela realmente é. Ainda que com muito poder e recursos, Emilia desperta em Rita algo que desencadeia uma virada de chave dentro dela mesma. Karla Sofía Gascón como Emilia entrega uma performance que não vou esquecer. Selena Gomez também surpreende.
Para contar uma história que carrega tanta paixão, o filme abraça o absurdo, o brega e o humor. Emilia Pérez é um musical que foge do convencional. Além de misturar ritmos latinos, traz momentos descontraídos, dramáticos e poderosos, que dão à história uma identidade própria. As letras e as cenas musicais são igualmente divertidas, envolventes e emocionantes. Há momentos para cada coisa. É um filme que definitivamente não espera agradar a todos, e ultimamente tenho encontrado cada vez mais beleza, coragem e ousadia nessas histórias. O tom do filme já é estabelecido nos primeiros segundos. É possível escutar um coral cantando:
“Se compram: Colchões; Tambores; Geladeiras; Fogões; Máquinas de lavar; Micro-ondas. Se compram: Diamantes; Passaportes; Dados pessoais; Metralhadoras; Drogas pesadas; Unhas postiças. Não se compram: Meu corpo; Minha alma. Não se compram: Minha vida; Minha música; Meu amor.”

Não acredito que o filme se perca em várias pautas, sejam elas fortes ou fracas. Não acredito que o ponto do filme seja a transição de Emilia Pérez. A raiz do filme é o impacto que ela teve na vida das pessoas ao seu redor, principalmente na vida de Rita, Epifania e Jessi. O impacto de transformação. A beleza que existe em Emilia Pérez reside no absurdo, no cômico e no desconforto. Pessoas vão achar algumas cenas constrangedoras, sem sentido, bestas. Talvez encontrem um final que não era o que esperavam. Mas o que isso diz sobre o filme? Sobre elas?
Emilia Pérez foi uma surpresa enorme para mim. Uma história audaciosa, original e familiar que transcende convenções, conectando suas escolhas narrativas e estéticas ao tema central de transformação. É muito simbólico ver no próprio cartaz do filme um coração que se parece muito com o Sagrado Coração de Jesus. Tudo está ali. Acredito fazer muito sentido um filme que fala sobre paixão abraçar esse excesso, essa intensidade, ao contar sua própria história. Se fosse apenas uma história comum, não teria o impacto que tem. E ainda bem.
Santos continuam sendo humanos. São feitos da argila da fragilidade humana, de pessoas, por pessoas, através de suas histórias e das pessoas impactadas direta ou indiretamente por eles. Não são feitos de materiais extraordinários ou divinos, mas de algo muito humano: as lutas, as fraquezas e as escolhas que todos nós enfrentamos. Não quero fazer aqui juízo de valor ou falar sobre os santos de maneira religiosa da forma como entendemos. Falo aqui sobre o impacto que eles têm na vida das pessoas. Acho tão significativo, tão poderoso, Emilia Pérez ter seguido esse caminho. Possamos, saibamos, encontrar a santidade em nós e no outro. Aquilo que nos move, que nos dá propósito, que move o outro e encontra sentido, lugar. É aí que mora a verdadeira santidade.
“Mudar o corpo muda a sociedade. Mudar a sociedade muda a alma. Mudar a alma muda a sociedade. Mudar a sociedade muda tudo.”

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