
Em um mundo irreconhecível para nós, muito distante do qual estamos acostumados, em um futuro provável ou não, vive um gato solitário. Ele procura entender seu lugar naquele mundo, procura entender quem é, o que é aquilo que enxerga quando encara seu reflexo na água, procura outros como ele, busca sobreviver e assimilar eventos que estão além da sua compreensão. Nesse mundo, todos os seres que ainda vivem nele são muito diferentes uns dos outros. Cada um com sua tribo, mas todos igualmente diferentes. Tal como o nosso, mas sem a nossa presença.
Dessa forma, Flow conta toda sua história sob a perspectiva desse pequeno gato de maneira hipnótica e sensorial. Ainda que seja um filme sem diálogos do começo ao fim, ele não tem dificuldade alguma em comunicar o que quer. Muito pelo contrário, é por esse motivo que podemos nos colocar no lugar daquele gato completamente. Somos facilmente imersos nesse mundo, através de sua atmosfera contemplativa. Seja pela sua beleza e estranheza, nós somos, quase literalmente, mergulhados imediatamente. Sem saber onde estamos, de onde viemos e para onde vamos. Tudo o que temos, que somos, é aquilo. E o que fazemos com isso?
Desde a primeira cena do filme, o gato encara sua própria imagem com curiosidade. Tenta se reconhecer. Vê grandes e pequenas estátuas de gatos e gosto de me perguntar o que será que se passava em sua cabeça – onde estão os outros gatos? Apesar de estar só, um a um, animais de diferentes espécies vão cruzando seu caminho e, com o decorrer da história e das adversidades que vão surgindo, ele vai aprendendo a conviver com as particularidades de cada um.

É admirável como Flow traça sua história de maneira tão natural e fluida. Como nos coloca nessa jornada, transitando entre o drama e a comédia. Usando pouco, mas fazendo muito. Sigo admirado e inspirado com a forma como se aproveita e supera suas próprias limitações. É uma simplicidade que transborda. Suas cores são inesquecíveis. Seu desenho sabe como explorar as luzes e texturas. Usa o brilho do sol de uma forma que eu, particularmente, sou apaixonado. Gints Zilbalodis faz um trabalho ambicioso e corajoso.
Quando olhamos para nós mesmos, o que somos, senão vários animais procurando nosso lugar no mundo? Procurando algo de nós no outro e vice-versa? Num mundo de tantas línguas, hierarquias, ideologias e religiões, num mundo tão diferente do nosso, é fácil enxergar o desconhecido com espanto, desaprovação, ódio. Sendo um filme estrangeiro e conquistando a aclamação que vem conseguindo no contexto de hoje, é inspirador e surpreendente que ele esteja superando fronteiras e chegando onde talvez Gints Zilbalodis não pensasse chegar tão cedo.
Respondendo a pergunta do começo, e o que fazemos com isso? Tentamos seguir em frente. Tentamos acolher a vida como ela é, as pessoas como elas são. Não tentamos mudar o outro, mas mudar quem somos. Trazer o olhar para dentro. Flow é mais um lembrete do que podemos ser quando abraçamos as partes de nós que são “outro”. Nos lembra que, ao acolhermos o que há de 'outro' em nós, reconhecemos nós mesmos. Para terminar, cito mais uma vez um trecho de um texto do rabino Nilton Bonder, que levo para a vida inteira.
"Perceber que a palavra "outro" (próximo) tem a mesma raiz que a palavra "ruim" é entender um pouco de nossa psique. O que é diferente é automaticamente visto como "ruim". Verdadeiramente amar o "outro" é tão difícil e violento como se propusemos amar o "ruim" ou o imperfeito. [...] Como poderemos tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é "outro", o que está fora de padrão e de expectativas? Não há identidade sem o outro; não há bom sem o ruim; não há bem sem o mal. [...] Afinal amar é o sentimento capaz de apreciar o diferente."

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