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CRÍTICA: HAIL SATAN? Desmistificando o mal e redefinindo o ativismo.

  • Foto do escritor: João Paulo
    João Paulo
  • 3 de set. de 2024
  • 6 min de leitura

Qual imagem você tem de algo ou alguém satanista? Se é que você já cruzou com alguém que se identificava como um. Provavelmente uma muito negativa. Um conceito construído por séculos para representar tudo aquilo que vai contra o que a Igreja Católica representa. Tudo que é mau e diabólico. No entanto, surgiu nos Estados Unidos, alguns anos atrás, um grupo disposto a mudar essa perspectiva e reapropriá-la para um novo contexto. Após assistir Longlegs e discutir um pouco sobre o Pânico Satânico no meu último texto, senti a necessidade de revisitar e escrever sobre esse documentário que mudou a minha forma de enxergar o ativismo contra sistemas teocráticos. Hail Satan? apresenta para o espectador, de maneira corajosa, controversa e ambiciosa, o que é o Templo Satânico, quem são seus membros e quais suas crenças. Já adianto que não é nada como vocês imaginam.



Co-criado por Lucien Greaves, porta-voz da organização, e Malcolm Jerry, o Templo Satânico é um grupo religioso não-teísta e ativista político com sede em Salem, Massachusetts. É um grupo que usa o imaginário e simbologia satânicos para promover a justiça social, o igualitarismo e a separação entre igreja e estado. Através da sátira, performances artísticas, teatro, humor e protestos, com o objetivo de gerar atenção e fazer com que as pessoas reavaliem seus medos e preconceitos, a proposta do Templo é encorajar a benevolência e a empatia. Eles destacam a hipocrisia religiosa, a usurpação da liberdade religiosa, incentivam as pessoas a rejeitar a autoridade tirânica, defendem o senso comum prático, e opõem-se à injustiça. Assim como os filósofos fizeram no passado, o poder político divinizado se transforma em objeto de dessacralização pela sátira. Como Emerson Sena no livro Ateísmo em sete lições pontua ao falar sobre os primeiros sinais de secularização: Dissolve-se a reverência ao sagrado. Introduz-se o riso, a gargalhada.



Filmes como Longlegs, A Primeira Profecia e o Bebê de Rosemary exploram temáticas muito semelhantes. Uma projeção cristã sobre o mundo e as pessoas. Os filmes de horror são reflexos do seu tempo e através dos medos sociais vigentes promovem o questionamento e o trânsito de ideias. A religião, ou a subversão dela, é um tema central nesses exemplos. Personagens ameaçados por um mal disfarçado que vem de dentro e de fora. Os personagens principais nesses filmes são frequentemente manipulados por forças externas que controlam suas vidas sem que eles percebam totalmente. Há uma crescente sensação de paranoia e desconfiança que permeia.



À primeira vista, conhecer o trabalho do Templo pode parecer algo desconfortável que causa estranhamento, mas é necessário discernimento e compreensão para lembrar que tudo é construção. Até mesmo o que antes entendíamos como mal. Nada é natural. Leis, costumes, instituições, são frutos de convenções/escolhas coletivas que repousam sobre bases acordadas entre os humanos. Além de toda a conotação negativa atribuída, o Templo Satânico se reapropria desse simbolismo de forma a se opor verdadeiramente à teocracia vigente ainda que muitas vezes mascarada. O grupo combate ativamente grupos de ódio, fornece proteção legal contra leis que restringem de forma não científica a autonomia reprodutiva das pessoas e muito mais.



O Templo Satânico não acredita no sobrenatural, então dessa forma não acredita que Satanás seja, de fato, uma divindade, ser ou pessoa. Eles acreditam que a religião pode, e deve, ser divorciada da superstição. Não se curvam a nenhum deus ou deuses e celebram seu status de outsider. Muitos questionam o porquê de abraçarem a figura de Satanás. Para eles, trazer essa bagagem impulsiona a investigação racional removida do sobrenaturalismo e das superstições. Defendem que o satanista deve trabalhar ativamente para aprimorar o pensamento crítico e exercer uma investigação razoável em todas as coisas. Acreditam que as nossas crenças devem ser maleáveis ​​aos melhores entendimentos científicos atuais do mundo material - nunca o contrário.



Para o Templo, Satanás é o símbolo do Rebelde Eterno em oposição à autoridade arbitrária, defendendo para sempre a soberania pessoal. Satanás é um ícone para a vontade inflexível do inquiridor implacável, o herege que questiona as leis sagradas e rejeita todas as imposições tirânicas. Esta construção metafórica fornece uma estrutura pela qual o Templo vive. Como complementa Emerson Sena: A heresia sozinha é um dogma sem poder; sem reis, imperadores, príncipes, sem exército, dinheiro, mercenários; ou bispos, sacerdotes; com massas de seguidores, e não encontrou ressonância com a sociedade/época em que surgiu. Por isso a necessidade de formar um movimento ativo. 



O Templo Satânico se inspira nos 10 Mandamentos e cria seus próprios Sete Princípios Fundamentais os quais deixarei no fim do texto. Posso dizer que me apaixonei imediatamente por esse modo de pensar e agir. São princípios tangíveis, palpáveis, verdadeiramente humanos e sinceros. Idealizados com amor, consciência e humildade.  



Conhecendo um pouco mais sobre eles, entendendo seus objetivos, me identificando com o que acreditavam e pelo o que lutavam fui encontrando ali algo inspirador. Uma proposta pioneira que conversa muito com o que eu acredito, ressignifica e dá novo sentido para o que é se opor à dominação e hegemonia religiosa. Nos tempos em que vivemos, movimentos como esse se fazem necessários. Não me admira ter crescido tanto nos Estados Unidos e ao redor do mundo. Ficaria muito feliz de ver algo semelhante aqui no Brasil. Para algumas pessoas ainda pode não ter ficado claro o porquê. Vou elaborar de forma ainda mais pessoal.



Eu sou um jovem que nasceu e cresceu em um lar católico. Vindo de uma família muito religiosa, logo fui batizado, frequentei a catequese, ia à igreja toda semana, fiz a primeira eucaristia e fui crismado. Todo o processo. 



Durante todos esses anos, sinto que fiz isso em parte porque era o que meus pais queriam para mim, mas também porque eu ainda procurava encontrar significado, lugar, sentido naquilo. Os ruídos apareciam na minha cabeça desde criança. Incoerências aqui e ali. Sempre questionando. Na catequese aprendemos que era errado fazer muitas perguntas. Deveríamos entender e aceitar o plano de Deus.



O primeiro grande conflito que tive com a Igreja foi quando me entendi como homossexual. Foram anos de culpa e sofrimento. Como poderia a Igreja, que eu passei grande parte da vida seguindo, me enxergar dessa maneira? Como poderia o Deus que dizem me amar tanto não acolher quem eu sou? Por um tempo, entendi que eu deveria ter a minha própria relação com Deus, fora da Igreja Católica. O que funcionou por um tempo.



Até que veio o segundo conflito: existe realmente um Deus? Céu ou Inferno? Se existe um ser superior, ele seria capaz de mandar alguém para o inferno por toda a eternidade? Quem quer que fosse? Foi quando me interessei cada vez mais por filosofia, sociologia e teologia. Me entendi como agnóstico, dizendo que não acreditava, mas não descartava a possibilidade. Depois, como ateu.



Hoje entendo que, para mim, não há cabimento que exista um ser superior, pelo menos da forma como as pessoas imaginam. Não tenho religiosidade. Não exploro minha espiritualidade. Até que isso não foi mais suficiente para mim. Desde pequeno, pairava na minha cabeça um imaginário preconceituoso do que era ser ateu. A primeira cor que me vinha à mente era cinza. Pessoas sem identidade, apagadas do mundo, sem mobilização. À mercê de sistemas teocráticos onde Deus existe na constituição, nos prédios públicos, nas escolas e até no nosso dinheiro.



Quando, muito pelo contrário, sinto que ir contra esses sistemas é algo libertador. É político e revolucionário. Não lembro como cheguei até esse documentário alguns anos atrás, mas cheguei. E, para o susto e desespero de muitos, tenho orgulho de ser satanista. No melhor sentido possível. Me dói que a sociedade enxergue essas pessoas de forma tão negativa quando o que mais existe ali é amor e autenticidade. 



Hail Satan? abriu meus olhos para uma nova forma de protesto. É um filme que considero essencial e que levarei para o resto da minha vida. Espero ver esse movimento crescer cada vez mais. Sendo resistência, nunca abandonando sua coragem e resiliência. Que seja apenas o primeiro de vários documentos, registros e projetos sobre essa temática. É um documentário que desperta em mim a urgência de fazer algo por mim e pela minha comunidade. Que sejamos sempre ativos, abertos, conscientes e livres.



SETE PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS 


I Devemos nos esforçar para agir com compaixão e empatia para com todas as criaturas, de acordo com a razão. 


II A luta pela justiça é uma busca contínua e necessária que deve prevalecer sobre leis e instituições. 


III O corpo de uma pessoa é inviolável e está sujeito somente à sua vontade. 


IV As liberdades dos outros devem ser respeitadas, incluindo a liberdade de ofender. Invadir intencional e injustamente as liberdades de outro é renunciar às suas próprias. 


V As crenças devem estar de acordo com o melhor entendimento científico do mundo. Deve-se tomar cuidado para nunca distorcer fatos científicos para se adequarem às crenças. 


VI As pessoas são falíveis. Se alguém comete um erro, deve fazer o melhor para retificá-lo e resolver qualquer dano que possa ter sido causado. 


VII Cada princípio é um princípio orientador projetado para inspirar nobreza em ação e pensamento. O espírito de compaixão, sabedoria e justiça deve sempre prevalecer sobre a palavra escrita ou falada.



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