top of page

CRÍTICA: I SAW THE TV GLOW: Deixar morrer para renascer.

  • Foto do escritor: João Paulo
    João Paulo
  • 18 de jun. de 2024
  • 4 min de leitura



Todos nós, em algum momento da vida—alguns mais do que outros, alguns mais cedo do que outros, alguns de maneira mais profunda—passamos por um momento de questionamento e deslocamento da própria identidade. Pense como deve ser questionar tudo o que você é e não estar em paz no corpo em que você nasceu. O mero fato de existirmos e sabermos disso já complica bastante as coisas. Acredito que, desde o momento em que nascemos, vivemos numa eterna busca e fuga de nós mesmos.


Nesse último final de semana, conversando, chorando e desabafando com meu namorado, eu disse algo que ficou comigo: “Tudo me lembra de mim.” À primeira vista, parece algo tão egoísta, mas digo isso no sentido de sentir-me sempre rodeado de “espelhos”—sejam pessoas, coisas, lugares—que me lembram constantemente daquilo que eu não quero ser lembrado, de quem eu não consigo ser, de quem eu sou e de tudo aquilo que não dou conta.


Nesses conflitos, vejo-me perdendo tempo, pessoas e a minha vida. Anos passam como segundos. Somos uma geração jovem, mas com a constante sensação de não termos mais tempo. Só que ainda há tempo, por mais cruel e pessimista que o futuro possa parecer e por mais duro que o passado tenha sido. Acredito que este seja o cerne de I Saw the TV Glow, dirigido por Jane Schoenbrun. Ainda que não seja uma experiência fácil, é um filme que desperta essa reflexão de forma autocentrada. Uma história que fala sim sobre transsexualidade, mas que irá ressoar com todos nós de formas inimaginavelmente diferentes.


Owen sabe, desde pequeno, que há algo de “errado” com ele. É uma sensação que o acompanha a vida inteira. A melancolia, a apatia, a tristeza e a falta de expectativas estão sempre presentes. Ele tenta se adaptar, o suficiente para sobreviver, mas vive nesse “e se?”. Normalmente, temos medo do que está dentro de nós, do que não entendemos e não acolhemos. Podemos nos sentir confusos, sentir que o tempo não passa mais como antes e que tudo está fora de sintonia. Quando conhece Maddy, juntos, os dois, através de um gosto em comum, apesar das adversidades, se permitem conhecer outra realidade e são desafiados a enfrentar esse status quo.





Recentemente, escrevi sobre Breakfast on Pluto e Hit Man e, por mais diferentes que ambos os filmes sejam, os dois ainda encontram algumas semelhanças com I Saw the TV Glow. Todos compartilham histórias sobre esse processo árduo e comum a todos nós que é se descobrir. Breakfast on Pluto se parece ainda mais quando consideramos a temática de histórias como um refúgio para nós. Owen e Maddy encontram na série de televisão The Pink Opaque um lugar que parece mais real do que a própria vida. Filmes, séries, livros e todas as formas de arte são reflexos de nossa humanidade. Uma forma de expressão que vem de nós para nós. Muitas vezes, encontramos mais conforto e pertencimento nesses lugares do que nas nossas próprias vidas. Existe um desespero de, literalmente, entrar na televisão e ir para esse lugar ideal. Nesse sentido, é notável também a influência de Videodrome de David Cronenberg até hoje. I Saw the TV Glow explora de formas gráficas essa relação entre corpo e televisão. Uma representação de uma luz interior, pouco acessada, coberta por uma carcaça.


O filme não cita a transsexualidade em nenhum momento, mas é uma parte tão gritante da sua imagem e história. Seja nos seus personagens, nos conflitos que eles enfrentam, ou nos diversos tons de azul e rosa que lembram imediatamente as cores da bandeira trans. Duas cores que carregam significados tão grandes em uma sociedade binária construída dos gêneros para os gêneros, onde a não-binariedade é marginalizada e incompreendida. Um detalhe interessante que não passa despercebido é que o pai de Owen, no filme todo, só tem uma fala. Uma fala carregada de preconceito e julgamento. Quando não está falando, sua ausência, postura e olhar já são suficientes. De maneira violenta, Maddy também enfrenta as mesmas dificuldades em casa.





I Saw the TV Glow também se assemelha em muitos aspectos com seu antecessor e primeiro filme de Jane Schoenbrun, We’re All Going to the World's Fair. Ambos não são histórias convencionais e brincam com as expectativas dos espectadores. Muitas vezes, não conseguimos discernir o que é real ou não. Acompanhamos tudo através do ponto de vista dos protagonistas e, da mesma forma como é para eles, tudo também é confuso para nós. Ambos apresentam universos solitários com personagens afastados do resto do mundo. Raramente os vemos interagir com outras pessoas e, quando isso acontece, é um processo gradual. Ambos exploram a sensação de deslocamento e solidão, mas enquanto I Saw the TV Glow aborda mais as questões relacionadas à identidade, We’re All Going to the World's Fair é um retrato do desespero por contato humano na era da internet.


Eu entendo que morremos várias vezes durante a vida. Viver é, constantemente, deixar morrer quem éramos e renascer novamente. É uma constante transformação. Às vezes, para avançarmos, precisamos nos enterrar no solo e deixar crescer uma nova versão de nós mesmos, como quando cortamos uma planta para que ela cresça melhor. Esquecemos que morreremos definitivamente um dia e, ainda assim, morremos um pouco todo dia.


“E se eu realmente fosse outra pessoa? Uma pessoa linda e poderosa. Uma pessoa enterrada viva que estava sufocando muito distante do outro lado da televisão.”


Talvez uma das piores coisas que pode acontecer conosco seja envelhecer e perder o sentido. Sempre volto a uma fala da Fernanda Torres, quando perguntada sobre do que ela tem mais medo: "De perder o interesse pela vida. Acho que esse é o maior perigo. Eu acho que isso pode acontecer com alguém em qualquer idade. Você pode viver 70 anos da sua vida e, aos 70 anos, você perder o interesse em estar vivo, e os seus 10 anos que você tiver até os 80 vão ser um inferno. Eu acho que isso pode acontecer aos 30. Não conseguir mais se relacionar com o mundo, não conseguir mais arrumar uma razão para trabalhar, uma razão para estar vivo, para comer. Viver é muito complicado. Você tem que se manter interessado, vivo e curioso a respeito do mundo. O maior perigo que tem é esse. É a perda do interesse e da curiosidade pela vida."



تعليقات


bottom of page